Missão acontece no encontro e no diálogo com o diferente

Bruno Manoel Socher, participou de voluntariado Marista por dois anos, nos Estados Unidos e no Líbano, estando próximo dos migrantes e refugiados. Acompanhe a entrevista realizada pelo jornalista Felipe Koller, editor da página Oficina de Nazaré.

Você esteve em missão por quanto tempo?
Então, não sei se eu posso me considerar um missionário, sabe? Embora eu tenha feito, sim, experiências missionárias, ou tenha passado por um estado missionário, eu ainda tenho essa visão de que o missionário é aquele que entrega a vida toda pra isso. Acho que me considero mais um voluntário mesmo.

Mas, mesmo que não permanente, você esteve nesse estado por um período.
Sim, sim. Eu participei de voluntariados Maristas por dois anos e em dois países diferentes. Nesse sentido, fui missionário.

E como foram essas experiências?
Bem, as minhas missões foram nos Estados Unidos e no Líbano. Embora sejam países muito diversos entre si, acho que a experiência central e comum da missão foi entender que ela se realiza no encontro e no diálogo com o diferente, com o outro. É se reconhecer no diferente. Esse é o coração da missionariedade. Para que a gente entenda isso é preciso sair da visão romântica para se confrontar com os desafios da missão: o missionário não vai para transformar uma realidade, ele vai para conviver com ela. Mesmo que a gente aprenda e ensine, e é claro que isso acontece, isso está nos detalhes do dia a dia. É uma vida de detalhes e, por isso também, em muitos momentos é solitária, difícil, triste, como toda vida.

Qual era o foco principal das missões?
Tanto nos Estados Unidos quanto no Líbano eu estive muito próximo dos migrantes e refugiados. Nos Estados Unidos, minha missão foi em Nova York. É muito diferente pensar a missão em uma cidade como essa, que é tão desenvolvida. Mas, como qualquer grande cidade do mundo, tem suas mazelas, suas feridas: muitas pessoas em situação de rua, imigrantes sem documentação e desamparados, crianças em situação de abandono ou cujos pais não assumiram aquela relação e assim as mães são as principais responsáveis pelo sustento da família, assim como aqui no Brasil. Lá meu principal trabalho era junto aos migrantes latinos, de modo especial essas mulheres. O trabalho com essa população foi muito desafiador porque, em primeiro lugar, tive que me rever diante da questão da mulher e dos seus direitos, que era uma perspectiva que eu, enquanto homem, francamente não tinha tanta clareza. Além disso, trabalhar com migrantes é estar diante de pessoas que saíram em busca de um sonho, de uma vida melhor, mas que muitas vezes não tiveram possibilidade de fato de fazer um projeto de vida, e esse é um direito básico. Essas foram realidades que eu não conhecia antes e que me transformaram muito.

Você sentiu muita diferença nos modos de ser Igreja, comparando a sua experiência no Brasil com essa missão em Nova York?
Eu acho que eu questionei muito mais a Igreja lá do que aqui. Por um lado, Nova York tem uma diversidade incrível. O mundo todo se encontra lá e também todos os ritos se encontram lá. É uma igreja liturgicamente muito bonita, mas ao mesmo tempo um pouco distante. Por outro lado, alguns temas pastorais lá estão muito mais avançados do que aqui. Eu lembro que fiquei muito impressionado com o trabalho da Pastoral da Diversidade por lá, por exemplo. Quando cheguei eles estavam celebrando 30 anos de atuação. E isso no Brasil ainda é um tabu imenso. Não que lá não existam resistências, mas é muito diferente daqui. Já o trabalho da Cáritas é muito forte, mas o modo com que a cultura estadunidense trata a assistência está muito ligado à ajuda financeira, a pagar as coisas. Isso para mim era um incômodo, porque eu sentia que essa ajuda financeira acabava vinculando a pessoa ajudada. Gerava nela uma obrigação, como se dissesse: “Fique na minha Igreja porque eu pago seu aluguel”. Isso não desenvolve autonomia, não liberta, embora seja também um passo necessário, porque as pessoas têm necessidades básicas que precisam ser supridas.

E no Líbano, como foi?
O Líbano surgiu como um segundo chamado. Depois de um ano nos Estados Unidos eu pedi ao superior Marista que me enviasse para outro espaço, porque sentia que já não tinha muito mais a oferecer naquela realidade. Foi assim que fui enviado para o Líbano. Lá eu trabalhava majoritariamente com muçulmanos e, de fato, conheci um mundo que para mim era totalmente diferente. Nós temos ainda uma mentalidade colonizadora muito forte, mas a missão me ajudou a entender que dar dignidade ao outro é conviver com ele, mais do que fazer qualquer outra coisa. É preciso se inculturar, partilhar a vida, ouvir, aprender com aqueles com quem estamos. Eu precisei ir até o Líbano e conviver com os muçulmanos, por exemplo, para entender de fato quem eles são. Eu descobri, por exemplo, que o islã tem uma cultura muito mais comunitária e de partilha do que a nossa, inclusive. Tudo isso foi um aprendizado.

Nessa experiência com o mundo muçulmano, a interação foi muito difícil?
De modo algum! A não ser pela língua, claro. Porque eu não falo nada de árabe. Mas eu aprendi muito sobre o islã no Líbano e uma das coisas que me chamou a atenção, como eu disse, foi o cuidado comunitário que existe entre eles e também o quanto são acolhedores. Nossa visão sobre o islã é muito distorcida… É claro que existem os radicais, mas eles existem entre nós também, não é? Quando um ocidental nos Estados Unidos comete um massacre em uma escola, por exemplo, ele só é chamado de terrorista se for muçulmano. Mas quando não é, chamam-no de “lobo solitário”. O terror e o radicalismo são características ocidentais também. Nós que não gostamos de admitir. Eu vi muitas virtudes e semelhanças entre nós cristãos e o mundo islâmico, inclusive na devoção mariana, que é muito forte entre eles.

Qual trabalho você desenvolvia lá?
No Líbano eu trabalhei em uma escola Marista e Lassalista chamada Projeto Fratelli. Embora seja uma escola cristã, nós atendíamos majoritariamente crianças muçulmanas, muitas delas filhas de famílias refugiadas da Síria e de outros lugares em conflito. Poucas, de fato, eram libanesas. Lá atendíamos cerca de 500 pessoas por dia.

Como se dá a evangelização em um ambiente assim?
Eu não acredito em uma evangelização catequética, no sentido daquela que se praticou em muitos momentos da história e que alguns grupos ainda têm como foco. Ser missionário é ser presença do Cristo no meio daqueles que sofrem. Mais do que falar do Evangelho, é viver o Evangelho e dar esse testemunho de proximidade, de valorização do outro. O simples fato de ser uma presença em um contexto de dor, de dificuldade já é um sinal de esperança na vida daquela pessoa. Estar com quem muitos não querem estar é resgatar a dignidade daquele sujeito. Para além dos trabalhos pontuais que o missionário desenvolve, acho que essa é a grande missão. Eu gosto de pensar como dizia Santo Oscar Romero: “Nós somos pedreiros, não mestres de obra.” O missionário tem que saber que ele é profeta de uma esperança que não lhe pertence. Eu tive um ministério onde passei, mas não sou eu quem determina o que será.

Qual foi o maior impacto em você dessas experiências?
Pra mim, definitivamente, o grande aprendizado foi a importância de me abrir ao outro e entendê-lo a partir da sua realidade, mesmo que sentir de fato o que o outro sente seja impossível. Nossos esquemas mentais são sempre outros. Mas, quando você se abre ao outro e aprende a ouvi-lo, a partilhar suas necessidades, você consegue desconstruir muito da sua visão de mundo. Quando nós crescemos com determinados privilégios, por exemplo, é muito fácil desenvolver uma mentalidade meritocrática. Eu era assim. Afinal, eu cresci em Curitiba, estudei em um colégio de elite, meus pais sempre trabalharam muito, mas conseguiram me dar condições que as pessoas que eu encontrei na missão nunca tiveram. A missão me fez entender as desigualdades profundas que existem entre as pessoas. Hoje eu não consigo sequer dizer que as pessoas têm todas igualmente 24 horas por dia, porque o tempo que alguém que vai trabalhar de carro e outro que vai trabalhar de ônibus dispõem é diferente e já implica em consequências importantes na vida de cada um. Estar nessas realidades fez com que eu mudasse.

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