‘Fui vendido’: jornada de um migrante na Líbia

Harun Ahmed é um dos milhares de jovens de países africanos pobres que se arriscaram na jornada pelo deserto do Saara até a Líbia, no norte da África, em busca de uma oportunidade para ir à Europa.

Ele conseguiu chegar à Alemanha, mas só depois de sobreviver a meses de tortura e inanição nas mãos de três mercadores de escravos distintos, que compram e vendem imigrantes como se fossem gado.

A comercialização de seres humanos na Líbia – país sem um poder central eficiente desde a queda do líder Muamar Khadafi, em 2011 – foi identificada inicialmente pela CNN no início de novembro.

migrante_libia2Reportagem da emissora americana mostrava leilões de migrantes. Ali, pessoas eram vendidas como escravos por US$ 400 para outros traficantes ou para realizar trabalhos forçados.

Após a reportagem, autoridades prometeram investigar a prática, mas migrantes entrevistados em Trípoli, capital líbia, dizem ser comum sofrer torturas e coerção na mão de traficantes e mercadores humanos.

Harun, de 27 anos, nasceu em Agarfa, em uma região com uma das mais altas taxas de migração da Etiópia, por conta da ausência de perspectivas. Harun chegou a tentar a vida no Sudão, mas, depois de um ano e meio, decidiu ir à Líbia, conhecido ponto de partida de migrantes que decidem se arriscar na perigosa jornada pelo Mediterrâneo rumo à Europa.

“Eu e outros migrantes começamos a jornada à Líbia pagando US$ 600 (cerca de R$ 1900 na cotação atual) para cada traficante”, explica Harun.

“Éramos 98 dentro de um único caminhão. As pessoas tinham que sentar umas em cima das outras, e o calor era insuportável. Nos deparamos com diversos problemas pelo caminho. Existem homens armados pelo deserto, (milicianos) que te param de repente e roubam tudo o que você tem.”

Mas a situação se complicou mesmo foi na fronteira: após seis dias de viagem pelo Saara, o grupo de migrantes chegou à divisa entre Egito, Líbia e Chade.

Ali, os traficantes se reuniram para comercializar os migrantes, conta Harun.

Só que houve um imprevisto.
“Na fronteira, um grupo de milicianos nos sequestrou e nos levou ao Chade”, ele conta. “Viajamos pelo deserto ao longo de dois dias, até chegarmos ao acampamento deles.”

Ali, o grupo, fortemente armado, explicou – em árabe e em outros idiomas africanos – o que queria.

“Eles trouxeram um carro e disseram que os migrantes que pudessem pagar US$ 4 mil cada poderiam entrar no veículo. Quem não pudesse pagar ficaria ali (no acampamento).”

“Não tínhamos dinheiro, mas conversamos entre nós e decidimos fingir que tínhamos, para conseguir entrar no carro.”

Harun e os demais migrantes que conseguiram entrar no veículo rodaram por mais três dias, até chegarem a outro local onde seres humanos são comprados e vendidos.

“Os homens que nos levaram disseram que haviam nos comprado por US$ 4 mil cada – e que, se não devolvêssemos o dinheiro, não iríamos a lugar nenhum”, conta.

Ao seu redor, ele via o que poderia acontecer com ele caso não arranjasse dinheiro.

“Víamos migrantes, a maioria deles de origem somali e eritreia, que estavam ali havia mais de cinco meses. Eles sofreram muito e sequer se pareciam com seres humanos mais.”

“Nós sofremos muito também. Nos forçavam a beber água quente misturada com petróleo, para fazer com que os pagássemos mais rapidamente. Nos davam uma quantidade minúscula de comida, e só uma vez por dia. Nos torturavam todas as noites.”

‘Muito ossudo’
Harun não conseguiu o dinheiro para pagar seus novos captores e, durante 80 dias, ficou retido no acampamento com outros 31 etíopes.

Até que os captores perderam a paciência.

“‘Se você não vai nos pagar, então vamos vendê-lo’, eles nos disseram”, relembra Harun.

“Estávamos sem comida havia mais de dois meses, então nossos ossos estavam muito aparentes. Por isso, um homem que levaram ao acampamento se recusou a nos comprar, dizendo ‘eles não devem nem mesmo ter rins’.”

Por fim, os traficantes encontraram um comprador: um líbio que pagou US$ 3 mil por migrante.

“Entramos no carro dele convencidos de que nada poderia piorar ainda mais a nossa situação. Mas fomos levados a Saba (Líbia) e, após quatro dias de viagem, nos deparamos com um sofrimento desumano. Nos torturaram colocando sacolas plásticas em nossas cabeças, prendendo nossas mãos nas costas e nos empurrando para dentro de um barril cheio de água. Batiam em nós com cabos de aço.”

Harun e os demais homens viveram assim por mais de um mês, até conseguirem contato com parentes para pedir dinheiro.

Após o pagamento, os migrantes foram autorizados a ir embora – só para serem presos novamente.

“Não fomos muito longe, porque outros homens armaram uma emboscada e nos levaram a um galpão. Disseram que só nos deixariam sair se pagássemos US$ 1 mil por cabeça.”

“A tortura e as surras continuaram. Telefonamos para nossas famílias, pedindo dinheiro outra vez. Nossos parentes venderam gado, terras, todas as suas posses e nos mandaram mais dinheiro.”

Refugiado
Harun conseguiu, assim, avançar mais em sua jornada. Chegou ao norte de Trípoli, disposto a tentar atravessar o Mediterrâneo.

“Ali, a situação ficou um pouco melhor”, conta ele. “Trabalhamos durante alguns meses, em qualquer emprego que conseguíssemos encontrar, e daí cruzamos o Mediterrâneo para vir à Europa.”

Harun teve, por fim, sorte – de não ter sido detido pelas forças de segurança dos países europeus e de não ter caído nas garras de novos traficantes humanos.

Ele desembarcou na Itália e de lá seguiu à Alemanha, onde seu pedido de refúgio foi aceito.

Harun diz que a “vida está boa agora”, mas agrega que seu sofrimento até chegar à Europa – em especial as perdas que ele viveu na jornada – permanecerá para sempre em sua memória.

“Enterramos um de nossos amigos na fronteira entre o Egito e a Líbia. Outros dois se separaram de nós em Saba (Líbia), e não sei se estão vivos ou mortos. Uma garota caiu no mar Mediterrâneo. Mas alguns conseguiram chegar à Europa.”

Questionado sobre se , com o conhecimento que tem agora, ele voltaria a fazer essa jornada, a resposta é direta: “Não”.

“Falando francamente, eu poderia ter estudado ou trabalhado no meu país natal. (Mas) via as pessoas indo embora e isso, somado à situação (de instabilidade) política, me convenceu a emigrar.”

Fonte: BBC

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

slot online situs slot gacor slot online slot gacor slot gacor situs judi slot gacor situs judi slot online situs judi toto slot gacor slot gacor judi slot slot online slot online judi slot slot gacor situs slot slot gacor 2022 slot gacor slot gacor slot gacor slot gacor slot gacor slot gacor situs slot gacor slot gacor https://cedu.uninorte.edu.co/wp-includes/ https://web.ics.purdue.edu/~asub/wp-includes http://blog.iconect.pctguama.org.br/ https://votoinformado.unam.mx/wp-includes https://epay.guaynabocity.gov.pr/epay/wp-includes https://reclamos.sistemasmlh.gob.ar/css/ slot pulsa slot deposit pulsa http://statconfig.sci.unhas.ac.id/assets/nexus-slot http://icob.sci.unhas.ac.id/nexus-slot/ https://www.aris.sc.gov.br/frontend/web/images/ https://aptta.org.ar/wp-includes/ https://icvb.org.tr/wp-includes https://filba.org.ar/images/ https://apps.santaisabel.sp.gov.br/ https://santaisabel.sp.gov.br/esd/ https://tzg.ttf.unizg.hr/wp-includes/ https://iif.edu/images https://mannaandbaby.or.jp/wp-content/uploads/slot-gacor/ toto slot gacor toto slot gacor toto slot gacor toto slot gacor toto slot gacor