Uma Ecoteologia iluminada pela Laudato sì a partir da Amazônia

A Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) Brasil realizou, nos dias 16 e 17 de agosto,  um encontro sobre Ecoteologia à luz da encíclica do papa Francisco Laudato sì na perspectiva amazônica

Perante as violações que os povos e o bioma amazônico vêm sofrendo com o acirramento da invasão e tomada de seus territórios e a continua exploração dos recursos naturais e de desmonte (despótico) das utopias, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) Brasil, com o apoio da Comissão Episcopal para Amazônia (CEA) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Grupo de Trabalho Igreja e Mineração da CNBB, viu-se provocada a refletir e buscar luzes a partir de uma ecologia integral que inspire e sustente as lutas cotidianas em defesa da vida e dos direitos dos povos amazônicos à luz de uma espiritualidade integral e comprometida com a vida em todos os âmbitos.

Iluminada pela encíclica Laudato sì (LS) do papa Francisco, a Repam-Brasil promoveu, nos dias 16 e 17 de agosto, o encontro sobre Ecoteologia, e sob um pé do cajuí, cajuzinho-do-cerrado, planta nativa, árvore que viu a Repam nascer em setembro de 2014, na sede das Pontificas Obras Missionárias (POM), em Brasília (DF). Participaram 45 lideranças e pesquisadores da Amazônia Legal, de Brasília, Bahia e Rio Grande do Sul.

grupo ecoteologia

A primeira reflexão sobre Alcances e Limites da Laudato sì à luz da Ecoteologia no Brasil ficou por conta do teólogo, irmão Afonso Murad e a socióloga, professora Márcia Oliveira.

Afonso Murad apresentou em uma síntese da encíclica, enfatizando as sintonias, dissonâncias e horizontes.

As sintonias: “Somos parte da terra, não seus patrões, dominadores e saqueadores” (cf. LS 1-2), fez notar Murad. O teólogo chamou atenção para a sensibilidade e a beleza dos ecossistemas e de cada ser, a fim de nutrir o encantamento, a admiração e o respeito, pois beleza e formosura estão presentes 32 vezes na LS. Segundo o irmão, os eixos da encíclica, fortalecem as convicções de quem está mergulhado nas questões socioambientais, pois tudo está estreitamente interligado e no mundo há uma interdependência. Lembrou também, que a encíclica mostra uma relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, e que faz uma crítica ao paradigma tecnológico e às formas de poder que derivam dela, e aponta proposta de outras maneiras de fazer economia e política, local e internacional.

Murad destacou a visão integrada e escalonada da situação do planeta que o capítulo I da LS traz: as mudanças climáticas; geração e emissão de resíduos; questão da água; perda da biodiversidade; Muraddiminuição da qualidade de vida humana e degradação social; desigualdade planetária. E questionou: “Se a situação é tão grave, por que as reações são tão fracas, com certo torpor e irresponsabilidade? É preciso uma indignação que mova à mudança”, reforçou. O teólogo ressaltou a postura profética da LS que provocou reações nos defensores do mercado ao apontar que a tecnociência não é neutra; que não há limites éticos em relação aos transgênicos; denuncia os projetos de impacto ambiental; crítica à economia capitalista que transformou todos os seres em mercadoria em vista do lucro crescente: o mercado divinizado. E convoca à ecologia integral e sua constelação: ambiental, econômica, social, cultural, da vida cotidiana (e urbana) e a integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.

Dissonâncias: Ausência de referência às mulheres, primeiras defensoras de Terra; falta de referência ao Conselho Mundial de Igrejas; ausência das tradições religiosas de raiz africanas, indígenas entre outras e o silêncio sobre os animais.

Caminhos abertos: De acordo com Murad, estes são os caminhos que a LS abre: o antropocentrismo débil e o “caminho do meio” entre o antropocentrismo despótico e o biocentrismo radical; no horizonte da Casa Comum, considerar as belezas e desafios próprios do bioma amazônico; relacionar, cada vez mais, o específico do bioma amazônico com a ecologia urbana; desenvolver categorias bíblico-teológicas a partir da realidade amazônica.

Dando continuidade ao debate sobre os Alcances e limites da LS, a professora Marcia Oliveira, afirma que uma leitura universal da encíclica permite uma releitura da Amazônia a partir das cosmovisões dos povos ameríndios, cujos elementos estão presentes na carta e que merecem ser aprofundados. Entre os aspectos importantes, destacou-se: A ancestralidade como um ponto de partida fundamental. Na sabedoria ameríndia o passado não é obsoleto, mas vínculo existencial até a geração presente. “A vinculação vital com os antepassados para aprender a cuidar de nós mesmos, de nossas raízes, da terra (ecologia humana)”. E ressaltou que a LS interpela a uma retomada da relação com a terra: “território e identidade são faces da mesma moeda”, enfatiza.

MarciaMárcia lembra que na experiência ameríndia o cuidado é fruto de uma relação de amor e respeito, diversa de uma herança cultural vinculada ao medo: se eu não cuido, a natureza vai vingar-se. A relação com Deus Criador é central nas cosmovisões ameríndias. E descreve que o mito da Terra sem males é um lugar/sonho/utopia da convivência plena, de igualdade social, que alimenta e motiva a resistência. A professora conta que por séculos, os povos ameríndios estabeleceram uma relação com natureza. “Muitos desses princípios coincidem com a LS: a proposta do Bem Viver, sentir parte da terra que se opõe a lógica da apropriação da natureza e do lucro. Os relatos dos viajantes descrevem a convivência com a natureza, abundância de alimentos, alegria de viver. Uma sociedade que conviveu séculos sem destruir, mas que sofre uma profunda destruição nos últimos séculos”, critica.

“À luz desses valores fica evidente os limites devastadores do sistema capitalista, de um conceito de civilização, progresso e desenvolvimento integracionista. Por conta do avanço da tecnociência, se rompeu com a sabedoria ancestral”, denuncia Márcia. A professora sustenta que o modelo capitalista emplacou um calendário de destruição e considera os povos originários um problema que deve ser removido. “um modelo que continua gerando morte e destruição”.

Contudo, assinala que, da contraposição de paradigmas e projetos incompatíveis, nasce a resistência dos povos indígenas, quilombolas e camponeses em toda a Amazônia. Um projeto com base na interdependência com a natureza, do Bem Viver. “É preciso dar visibilidade por que esses povos não aceitar um modelo de desenvolvimento que destrói a vida. É preciso reescrever a história de resistência desses povos”, garante.

Proposta: Da interação com os participantes surgiram propostas e questionamentos: promover um encontro Laudato sì e Conselho mundial das Igrejas. Recolher as conclusões dos últimos encontros das Igrejas cristãs e debater a LS; Como desenvolver categorias bíblico-teológicas a partir da realidade amazônica? Podemos resgatar o método de Paulo Freire em chave amazônica, valorizando as palavras geradoras desse chão (por exemplo: açaí, ciclo das chuvas, etc). Resgatar a simbologia e a visão arquetípica, estratégia que o mercado faz muito bem e que precisamos assumir como central. É também provocação pastoral a partir da proposta educativa de Paulo Freire.
A segunda rodada de conversa contou com a participação da Irmã Tea Frigerio, uma das maiores referências em estudos da Bíblia na Amazônia e do teólogo frei Luiz Carlos Susin, umas das vozes no Brasil na questão da ética e teologia da libertação animal.

Tea reagiu à sentida auTEAsência das mulheres na LS. E ressaltou que é preciso colocar-se em silêncio escutar e sentir as vozes, o potencial e a fragilidade do povo amazônico, em especial as mulheres amazônidas. “A Amazônia é um corpo, uma sexualidade, uma sensualidade, é corporeidade, dimensões fundantes de uma relação, tantas vezes manipulada, barateada, dominada”, alerta a religiosa. Tea assinala que é preciso escutar os mitos da Terra sem Males em paralelo com os mitos da Criação para encontrar o caminho da harmonia e do Bem Viver. “No mito da Terra sem Males, a relação entre o ser humano, a natureza e o divino se dá pela dança, o canto e o sonho; o mito do Dilúvio nasce do comando, da obediência, mas termina na aliança do arco-íris”, acrescenta. E chama a ter atenção “a voz de um povo sofrido que quer reescrever a história da Amazônia, a partir de suas riquezas, lutas e resistências, e não do vencedor”, constata.

“As mulheres amazônicas ensinam a ser feminista”, assegura a freira. Tea expõe que na história da Igreja na Amazônia não existe a vida consagrada feminina, mas observa que a fé do povo é alimentada com o trabalho silencioso das religiosas consagradas e de muitas mulheres que coordenam as comunidades de base espalhadas pela região.

Segunda Tea, para pensar um mundo alternativo do Bem Viver, diante de visões e projetos irreconciliáveis é preciso ir à raiz do problema: o patriarcado que é filho do capitalismo. De acordo com Tea, a “Laudato Si não sai, todavia de um esquema de pensamento patriarcal, contudo abre portas para sair dessa lógica e repensar uma nova relação entre o ser humano, a natureza, o divino expresso nas vozes amazônicas” e convoca a fazer ecoteologia a partir da Amazônia que tem dois projetos de desenvolvimento em contraposição: um quer explorar os recursos da natureza a partir do capital, outro de preservação e cuidado da Casa Comum. “Frequentemente, a primeira visão é masculina e a segunda feminina, e nesse caso, incompatíveis. Temos que fazer uma opção que projeto queremos”. A biblista lembra que na aliança de Deus depois do dilúvio, está escrito que Deus pendura no céu o arco, instrumento de guerra e poder: renuncia a um modelo para iniciar outro. “Às vezes atribuir à natureza um paradigma feminino pode ser ambíguo: pela cultura de hoje, o feminino é objeto de subordinação, submissão e serviço. Precisamos libertar essas categorias”, esclarece.

Tea trouxe a questionamento o tema da mulher que abarca os paradigmas socioeconômicos e religiosos. E convidou: “É preciso ousar na busca de novos horizontes, romper os paradigmas”, e chamou a questionar-se “sinceramente, que Igreja nós queremos? Os dois modelos de que falamos hoje não são complementares, não podem conviver. Ou optamos por uma Igreja hierárquica ou por um caminho de participação”, provocou

A vida dos outros: A vida dos outros: ética e teologia da libertação animal, publicação coordenada Susinpelo frei Luis Carlos Susin, fruto de um debate sobre a ética e a teologia animal, coloca a produção de carne e os produtos animais como resultados de uma cadeia de atividades ecologicamente destrutiva. “Tais atividades lançam mais metano na atmosfera que os combustíveis fosseis”, denuncia o frei. Segundo Susin, a criação bovina implica na destruição da floresta, e coloca como exemplo o consumo hídrico para a criação de gado: são 17 mil litros de água por quilo de carne e para 270 hectares de terra disponíveis, 210 são destinados para a pecuária e o restante para a agricultura.

Susin enfatiza que LS nesse ponto avançou um pouco em relação ao catecismo, “poderia ter ido além, mas é a consciência possível da Igreja nesse momento”, diz. E explicita que a encíclica faz referência aos animais em duas momentos, em outros valoriza as criaturas. Contudo, Susin reconhece que na LS os animais são como objetos da paisagem e lembra que do ponto de vista bíblico, o animal é dado para a convivência, tem uma relação terapêutica. “Na perspectiva ecológica, pode-se considerar que o fenômeno da superpopulação animais é mais grave que a humana. O fetichismo vende proteína e esconde o sofrimento e a morte do animal”, denuncia. “Entre as distorções está a projeção afetiva nos animais (amores torturantes), o comércio pet, o entendimento do sofrimento do animal, mas sem uma compreensão profunda da questão, dos impactos na saúde e no ecossistema, a salvaguarda da floresta e do cerrado implica na correção destas distorções”, avisa.

Fonte: Repam

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